Café Insólito: Jung (Parte II)

Este é o terceiro episódio que finaliza, por enquanto, o café insólito com o personagem Carl Jung. Se não leu Café Insólito: Jung (parte 1) acesse: Café Insólito: Jung (Parte 1)

– Não vou lhe dar uma definição, mas medite nisso: O homem que não atravessa o inferno de suas paixões também não as supera.

– Carl, existe uma receita ou mapa para se conseguir “atravessar esse inferno”?

– Não acredito que exista tal ‘mapa’ que sirva para todos. Descobri que existem verdades e experiências que possam servir de orientação induzindo ao questionamento positivo, o raciocínio prático e estes juntos possam produzir iluminação durante a jornada da vida, o que inclui atravessar o inferno das paixões.

– E quais seriam algumas destas verdades e experiências?

– Uma delas é que onde o amor impera, não há desejo de poder. Onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro.

– Jung, simples, porém profundo! Amor e poder são sombras um do outro. Concordo 100% contigo! Mas, nós humanos, temos a tendência de querer basear nossas decisões naquilo que vimos, observamos e imaginamos que possa ter dado certo ou errado na vida de outros. O que você acha disso?

– Ian, na minha opinião, os sapatos que ficam bem numa pessoa são pequenos para uma outra; não existe uma receita para a vida que sirva para todos.

– Simples, mas faz muito sentido.

– Ian, lembre-se da pergunta que fiz: – Já olhou para dentro?

– Sim Carl, eu já olhei algumas vezes. E digamos que agora mais do que nunca estou neste processo.

– Então neste caso, outra verdade é: As pessoas não farão nada, não importa o quão absurdo com a finalidade de evitar encarar sua própria alma.

 – Acho que entendo isso um pouco, Carl. E fugir não resolve nada.

– Todos têm o seu lado obscuro que desde que tudo corra bem é preferível não conhecer. Talvez por isso alguns fogem ou simplesmente não querem pensar nisso.

– É Carl, agora você me fez lembrar a história do Dr. Jekyll e o Mr. Hyde, a clássica cisão entre “o bem e o mal” em todos nós.

– Ian, eles são a personificação do Ego e a Sombra.

– Ego e a Sombra? Jung, explique isso um pouco mais!

– O ego é frágil. É a luz preciosa do consciente que necessita ser protegida e aperfeiçoada. É o nosso sentido de objetivo e identidade. Um ego saudável organiza e equilibra os elementos conscientes e inconscientes da psique. Um ego fraco deixa a pessoa “na sombra”, correndo o risco de ser engolida pelo caos das imagens inconscientes.

– E a sombra, o que representa?

– Já a sombra é nosso lado sombrio, caracterizado pelo inferior, pelas qualidades incivilizadas que o ego deseja esconder dos outros. Não é totalmente ruim, apenas inadaptada. Ela pode revigorar a vida, se a encararmos com honestidade.

– Carl, você mencionou que o ego deseja esconder algo dos outros. Como assim?

– Meu caro Ian, o ego está relacionado ao que chamo de persona, isto é, a parte do consciente que negocia com o mundo exterior a favor do ego. Persona vem da palavra latina para ‘máscara de teatro’.

– Acho que entendi. Persona é a face que vestimos ou máscara para a sociedade, correto?

– Exatamente. E sabe o que muitos temem neste sentido?

– Deixar cair a máscara?

– Não apenas deixar cair a máscara, mas temem que ao deixa-la cair percebam que não existe nada real atrás dela. As neuroses podem surgir de reações disfuncionais à vida, do sucesso vazio e do confinamento num horizonte espiritual estreito demais.

– Jung isso é muito profundo. Acho que este tema merece uma conversa muito mais longa, mas temo que nosso tempo esteja se esgotando. Assim quero aproveitar para saber um pouco mais sobre sua vida familiar. Afinal, você mencionou que iria conversar sobre verdades e experiências. Qual sua experiência neste sentido?

– Vou lhe contar brevemente e espero que entenda a mensagem que quero passar. Lembre-se que mencionei a importância de usar o raciocínio.

– Jung esteja certo que estou fazendo isso. Todo o tempo. Tenho dificuldade em desligar o raciocínio. Na verdade, conseguir relaxar.

– Não consegue relaxar? Vamos falar sobre isso mais tarde. Quando eu tinha 21 anos de idade, avistei pela primeira vez no topo de uma escadaria a mulher com que iria me casar. Ela tinha apenas 16 anos. Disse a um amigo que estava ao meu lado: “Aquela menina é minha esposa!”

– Como assim? Você já a conhecia?

– Mesmo antes de falar com ela, eu soube que ela seria minha mulher e sete anos depois isso se tornou realidade. No dia 14 de Fevereiro de 1903, eu e Emma nos casamos.

– Que incrível! Fale-me um pouco mais sobre Emma.

– Ela é de uma família suíço-alemã. Uma mulher culta, elegante, admirada por seu charme e sociabilidade.

– Amor à primeira vista?

– Ian, nesse assunto de amor e paixão, o encontro de duas personalidades assemelha-se ao contato de duas substâncias químicas: se alguma reação ocorre, ambos sofrem uma transformação.

– Até que para um homem que é o pai da psicologia analítica você é um camarada romântico!

– Talvez nesse caso possa ter ocorrido um pouco de sincronicidade.

– Sincronicidade? Isso lembra um disco que eu gostava muito, Sinchronicity, de um grupo inglês chamado The Police que certamente você nunca ouviu falar. Mas o que é sincronicidade?

– Em termos bem simples: Sincronicidade são acontecimentos que se relacionam não por relação causal e sim por relação de significado ou “coincidência significativa”. Acredito que ela é reveladora e necessita de uma compreensão. Essa compreensão pode surgir espontaneamente, sem nenhum raciocínio lógico. A esse tipo de compreensão instantânea dei o nome de “insight“.

– Acho que mais ou menos o mesmo que já ouvi dizer: “Forças do Universo.” Nesse assunto penso que muitas pessoas preferem acreditar numa ‘força impessoal inteligente’ que fica regendo todos os assuntos das pessoas do que buscarem realmente entender o que existe na verdade visto que tal descoberta pode trazer responsabilidades morais. Virou moda dizer: “Forças do Universo” ou simplesmente “O Universo” faz isso ou aquilo. Mas voltando o tema, um amigo recentemente num papo que tivémos, exclamou: “Afinal de contas, o que querem as mulheres?” Tem alguma resposta iluminadora sobre o assunto?

– Ian, qual é a sua opinião a respeito?

– Carl, sinceramente, não sei dizer. No momento tenho apenas teorias.

– Por que apenas teorias?

– Já cometi alguns erros nesse assunto ao buscar uma resposta que fosse clara e única. Por isso, o que tenho hoje são teorias.

– Bem, meu caro amigo Ian, erros são no final das contas, fundamentos da verdade. Se um homem não sabe o que uma coisa é, já é um avanço do conhecimento saber o que ela não é.

– Mas como eu disse Carl, a pergunta não é minha. Alguma resposta ou algo que induza ao raciocínio neste caso?

– Talvez a pergunta poderia ser reformulada. “Afinal, o que querem os seres humanos? Sejam estes homens ou mulheres.” Faz sentido?

– É um ângulo diferente para se pensar sobre o assunto, Carl.

– Tudo depende de como vemos as coisas e não de como elas são.

– Acho que isso é relativo meu caro Jung! Há momentos na vida em que as circunstâncias e outros acontecimentos ou mesmo certas decisões gerem sofrimento de uma forma ou outra, correto?

– Correto Ian, porém o sofrimento precisa ser superado e o único meio de superá-lo é suportando-o.

– Acho que preciso tomar outro café, estou começando a ficar com muito sono.

– Incrível coincidência! Também estou. Eu tenho uma boa desculpa, já tenho 85 anos de idade.

– Oitenta e cinco? Sua aparência é de alguém com trinta e poucos. Ainda vou entender isso uma hora dessas.

– Entender o que?

– Carl, entender se isso é um sonho, realidade ou sei lá o que?

– Sonho? Como sabe esse para mim é um tema fascinante. Escrevi muito a respeito. Acredito que os sonhos são realizações de desejos ocultos sendo a ferramenta que busca equilíbrio pela compensação. É o meio de comunicação do inconsciente com o consciente. Talvez te ajude ler algum de meus livros. E falando em sonho, o meu sono está ficando cada vez mais forte.

– Gostaria muito de continuar essa conversa. Há muitas outras perguntas e temas. Inconsciente coletivo, por exemplo.

– Sim, um dia conversaremos novamente. E com um bom vinho ao invés de café. Gosta de vinho, Ian?

– Claro! Aprecio muito. Será uma ocasião e tanto podermos conversar novamente. Agora quando e onde não faço a menor ideia.

– Sabe Ian, acho que quando estiver em casa novamente irei tomar um dos melhores vinhos de minha adega pessoal.  

– Então antes que ambos cedamos ao sono, como você gostaria Carl de pausar esta nossa conversa insólita?

– Com algo para induzir ao raciocínio, meditação e que resulte em ações práticas.

– Estou ansioso em ouvir. Diga Jung, diga!

– Da metade da vida em diante apenas permanece vitalmente vivo quem está pronto para morrer com vida. Porque na hora secreta do meio-dia da vida, a parábola é invertida, a morte nasce. A segunda metade da vida não significa assunção, desdobramento, aumento, exuberância, e sim morte, já que o final é a sua meta. A negação do cumprimento da vida é sinônimo da recusa em aceitar seu fim. Ambos significam não desejar viver; não desejar viver é idêntico a não desejar morrer. Crescente e minguante desenhando uma só curva.

– Mais uma vez muito profundo! A jornada da vida é realmente muito curta. Eu espero um futuro diferente meu caro Jung onde a vida não seja tão efêmera e a nossa maior inimiga, a morte, seja vencida. Você me deixou com muita coisa para meditar, mas meus olhos estão tão pesados…

Nesse instante, o sistema sonoro da cabine ecoa:

– Passeio encerrado. Solicitamos a todos que deixem a cabine do London Eye assim que as portas forem destravadas. Repetindo: passeio encerrado. Solicitamos a todos que deixem a cabine do London Eye assim que as portas forem destravadas. Obrigado e até a próxima!

Ian fica pensando consigo mesmo que precisa começar a se acostumar com mudanças abruptas como essa! Num momento conversando com alguém ilustre como Voltaire e Carl Jung, no outro sendo acordado por alguém ou pelo sistema de informações. Quando será a próxima? Onde? Com quem? E por quê? Até lá, Ian Klondyke terá muito no que pensar e avaliar após mais este café insólito!

London Eye

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