A Verdade Cicatriza

Já ouviu a expressão “Calcanhar de Aquiles”? Ela indica a principal fraqueza de alguém.

Que tal mudar um pouco o desfecho dessa lenda? Vamos imaginar que Aquiles embora atingido no calcanhar tenha conseguido sobreviver, mas a ferida continuasse ali. Ela nunca cicatrizasse. Uma constante fonte de dor. O herói continuaria travando suas batalhas e somente quem observasse muito de perto notaria aquele ferimento que nunca cicatriza. Em parte devido ao veneno que ainda está ali e mantém viva uma infecção que lentamente drena a energia de Aquiles.

Imagine a cena: o valente e temido Aquiles no auge de uma batalha de repente sente uma forte fisgada no calcanhar. Ele talvez pense: “Será que fui atingido novamente?”. Num breve relance consegue perceber que seu calcanhar sangra. Não é um novo ferimento. Apenas aquele que nunca cicatriza. A dor é lancinante, mas não há tempo nem condições para cuidar disso agora. A batalha é feroz. O herói precisa olhar para frente e continuar avançando mesmo sem conseguir dar toda sua atenção. Ele imagina: “Após vencer mais esta batalha irei parar e dar atenção a este ferimento. Preciso cura-lo. Ele precisa cicatrizar!”.

Não é necessário ser um herói mitológico ou real que trava batalhas para entender que um ferimento por menor que seja, mas que nunca cicatriza rouba lentamente a energia do corpo que luta para manter sob controle uma latente infecção. O pior é que as vezes a infecção vence e se espalha tão rapidamente vencendo todas as defesas. Embora seja doloroso o ideal é abrir e limpar a ferida não importa o quanto possa doer (em alguns casos o odor também é terrível), mas somente desse modo ela cicatrizará. Só assim todo o organismo continuará saudável. Afinal de que adiantaria vencer todas as batalhas, ganhar a admiração e obter todos os tesouros, mas pagar como preço a própria vida? Nada poderia ser usufruído. Como um ditado do Oriente sabiamente diz: “Melhor o cão vivo do que o leão morto.”.

Quais seriam ‘os ferimentos’ que nunca cicatrizam que todos nós vez por outra tentamos esconder ou apenas suportar? Até onde é possível ir assim? Por quanto tempo? A resposta depende, em parte, da expectativa de vida do indivíduo. Expectativa de vida? Vou exemplificar. No caso de Aquiles, o herói quase imortal, sua expectativa de vida era longa, muito longa talvez eterna afinal era praticamente invulnerável. Quanto tempo ele suportaria aquele constante incomodo e dor sem perder o foco nas estratégias e batalhas bem como na luta pelo poder. Afetaria isso também sua capacidade em expressar o amor que sentia por Briseis como declarou: “São os Atreus, entre os mortais, os únicos que amam suas mulheres? Acho que não. Qualquer sujeito sadio e decente ama a sua e cuida dela, como em meu coração amei Briseis, embora a tenha conquistado pela lança.Aquiles fala sobre ‘qualquer sujeito sadio”. Sim, alguém sadio física, espiritual e emocionalmente ama a si mesmo na dose certa e consegue amar outra pessoa. A ferida de Aquiles existiria enquanto ele vivesse afinal um herói nunca é ferido  ou se isso acontecesse a recuperação seria imediata porque os heróis que residem nos contos e estórias são assim.

Os heróis da vida real são um pouco diferentes. Eles são feridos e por fim morrem. Novamente o ponto é: qual a expectativa de vida? É incrível como algumas pessoas vivem como se quantidade de dias que possuem pela frente fosse algo garantido e acabam fazendo planos demais, porém ‘vivendo’ pouco. Talvez imaginam que os dias pela frente são como uma conta bancária onde o saldo é bem grande e dá pra ir ‘sacando’ conforme a necessidade e acumulando para uso futuro. O fato é que comparado a uma conta bancária, a cada novo dia é feito um ‘depósito’ de vinte e quatro horas pra serem usados neste período, não dá pra acumular nem adiantar o depósito do dia seguinte, ou seja, utilize-o ou perca-o. Qual é sua atitude predominante neste assunto? Vive como um ‘correntista’ que acredita ter um saldo bancário interminável? Vive planejando novos investimentos e operações, mas sempre no estilo moderado nunca arrojado? Ou acha que o saldo ficará negativo sempre? Não experimenta novos investimentos porque alguns se deram mal? E os que se deram bem?

Por mais que sejam parecidos nenhum dia é igual ao outro. Cada dia apresenta um novo universo de possibilidades. A nossa atitude diante dos acontecimentos que causamos ou que nos são causados fazem toda a diferença. Ela precisa ser fundamentada na verdade. Não significa concordar com tudo porque embora hoje em dia parece predominar a cor ‘cinza’ tornando mais desafiador distinguir o ‘preto’ do ‘branco’, a atitude para ser sustentada precisa de um alicerce sólido. Não é possível sustenta-la na mentira ou no fingimento. Um exemplo simples da vida real para ilustrar: um garotinho de 5 anos de idade ouve sempre sua mãe dizer que não gosta da cor azul. Em sua casa as cores das paredes, móveis e outras coisas são bem variadas, mas o azul que a mãe não gosta está ausente. Neste contexto isso é coerente. Um certo dia esse garotinho vai junto com a mãe visitar uma tia. A tia toda alegre mostra as cortinas novas da sala de estar: azuis.  Ela pergunta: “O que você achou?”. O garotinho olha imediatamente para a reação da mãe. Ela exclama: “Elas são lindas! E a cor é realmente perfeita.”. Na mente de um garotinho de 5 anos essa incoerência pode leva-lo a raciocinar que diante de situações constrangedoras é válido fingir ou dizer algo apenas para agradar. A verdade nesse caso pode causar algum desconforto. Haveria alguma outra saída? Sempre há outra saída. Pode não ser a mais fácil ou mais agradável, mas sempre há. Talvez naquela situação perguntar a tal tia por que escolheu o azul a levaria a contar uma história que no final ajudaria a dissipar a pergunta inicial permitindo continuar a conversa até algum outro ponto.

O caso citado é algo muito simples. Em outros mais sérios e complexos como nas relações humanas nos campos profissional e pessoal, a verdade faz a diferença entre algo cicatrizar ou não. No caso do garotinho a mãe vai ter dificuldades quando mais a frente ele utilizar a mesma ‘tática’ usada dizendo ou fazendo coisas só para agradá-la e não constrange-la embora a verdade poderá ser outra bem diferente.

A primeira vez que ouvi o termo ‘mentira branca’ foi no ambiente corporativo. Confesso que não tenho como escrever aqui uma definição técnica do que é uma ‘mentira branca’, mas acredito que pela lógica devem existir outros tipos de mentiras: amarela, azul, verde, vermelha e preta. Por outro lado dizem que existem as ‘meias-verdades’ e se assim for também podemos chama-las de ‘meias-mentiras’. Comparadas a um ferimento infeccionado só vai cicatrizar se for a verdade. Sem graduação de cor ou meia-dose. Pense num profissional que recebe feedback sobre quais pontos precisa fortalecer visando seu crescimento até atingir os requisitos demandados numa posição gerencial. Se o feedback fornecido foi verdadeiro, não importa que frustração momentânea ou dor tenha gerado, ele terá servido, se absorvido e digerido adequadamente por quem o recebeu, como indutor de crescimento. A verdade cicatriza muito mais rapidamente e torna livre. Poupa tempo e tempo não é somente dinheiro como diz o ditado, tempo é vida. Quanto vale um minuto de sua vida?

Nos relacionamentos interpessoais fora do ambiente profissional a lenda modificada de Aquiles (lembra, ele foi ferido no calcanhar e deveria ter morrido) é muito mais fácil de ser observada. Amizades que possuem como base
interesses comuns, mas quase nunca suportam a força das tempestades e carecem de um alicerce sólido.  Amigos ‘submarinos’, sim aqueles que submergem quando você mais precisa e vez ou outra emergem pra ver se algo melhorou senão submergem novamente. Nestes casos a ‘ferida’ que apareceu, isto é, a decepção por descobrir o que não era uma amizade verdadeira, vai cicatrizar. Porque a verdade veio à tona, ficou evidente. Depois que a ‘tempestade’ passar e os ‘submarinos’ emergirem novamente ficará fácil identificá-los. Ninguém precisa de ‘submarinos submersos’ numa tempestade e muito menos quando o dia voltou a brilhar.

Na vida a dois as feridas não cicatrizadas muitas vezes resultam numa lenta infecção que torna-se crônica e muitas vezes quando diagnosticada pode ser um pouco tarde. Esse tipo de ‘infecção’ transforma a Bela Adormecida numa ‘preguiçosa’ embora ainda ‘bela’ e o Príncipe Encantado que perdeu o encanto num ‘egoísta’, mas que mantém o cavalo branco. Num relacionamento seguro e saudável onde cada um não deveria ter receios de expressar suas queixas, a infecção crônica afeta o bom senso, a razão, o autocontrole e até o amor que estava ali há alguns minutos atrás (ou anos atrás?) abrindo campo para sintomas mais graves da ‘infecção’ onde na hora da raiva as queixas são desferidas de forma destrutiva, como ataque à personalidade do outro resultando em mais feridas que quase nunca cicatrizam porque quase nunca são tratadas adequadamente e no tempo apropriado piorando o quadro geral do ‘paciente’, quer dizer, do relacionamento. E existem feridas profundas como as estocadas de uma espada que não matam na hora, mas infeccionam e não cicatrizam, poucos sobrevivem à elas. Aqueles que tentam sobreviver as estas feridas que não cicatrizam porque a verdade não está presente apenas prolongam o sofrimento e perdem tempo valioso de suas vidas o qual jamais conseguirão recuperar.

Há algum tempo atrás um amigo, que está entre aqueles com o qual se pode contar, não deu atenção a um pequeno ferimento no dedo do pé causado por um sapato novo apertado. Continuou o dia-a-dia como se aquilo não tivesse importância nenhuma. Raciocinou que no passado outras coisas assim haviam aparecido e sumiram em pouco dias. Pra que perder tempo indo num médico? Aquele minúsculo ferimento só coçava um pouco e só estava um pouco vermelho. Dias se passaram até que subitamente uma febre forte apareceu e em pouquíssimas horas lá estava meu amigo internado num hospital com uma infecção causada por uma bactéria desconhecida tomando conta rapidamente do pé, perna e aí vai. Resumindo: 7 dias de hospital, tratamento com antibióticos pesados, mais dias de molho em casa e muitos outros pra se recuperar plenamente. Segundo os médicos poderia ter evitado tudo isso se logo no começo tivesse tratado aquele pequeno ferimento e talvez teria perdido apenas um dia de trabalho. Felizmente ele escapou e depois recuperou-se 100%. Nem todos tem a mesma felicidade. Fatos: havia um pequeno ferimento virou infecção, mas foi tratado. Causou dor, sofrimento, medos, preocupações e até risco de morte, mas era esse o caminho para a cura. Demorou, porém houve recuperação completa. A verdade cicatrizou.

Já pensou em fazer um check-up para descobrir se existe algum ‘ferimento’ que não cicatriza? Por experiência própria tentei prosseguir nas ‘batalhas’ diárias da vida com feridas abertas e descobri que apenas adiei o inevitável. Hoje tenho ‘cicatrizes’, algumas são agora quase imperceptíveis e outras bem visíveis contudo elas tem algo em comum: não causam mais dor nem drenam minha energia. No processo de cicatrização a dor vai dando lugar a um sentimento de alívio, alegria e por fim de felicidade. Aprendi que a verdade cicatriza e qualquer outra tentativa diferente dela apenas mantém abertas as feridas que acabam infeccionando e causando dor insuportável. É uma questão de escolha talvez digam alguns. Pode ser.

Calcanhar de AquilesAquiles morreu quando ferido em seu único ponto vulnerável e para ele não havia escolha. Essa é a verdade, mas apenas uma lenda. Na vida real sempre existem escolhas. Nem sempre as melhores escolhas são as mais fáceis e até podem gerar um pouco de dor, mas como dizem: qualquer coisa que realmente valha a pena exige esforço sério. Quais serão as suas escolhas? Sejam elas quais forem, lembre-se: a indecisão apenas rouba tempo valioso da vida e que apenasverdade sempre cicatriza.

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